JOESÉR: A RATAZANA CRIA SEU NINHO
Há os ratos brancos da arte: aqueles que ficam dentro da garrafa de vidro no laboratório, comendo ração e pensando seriamente que o mundo, que aquele espaço branco onde às vezes um ratinho branco é brancamente sacrificado por aquelas sombras também brancas, é o horizonte visível; mas há, para nosso sabor, as ratazanas de esgoto dentro do largo mundo sem fronteiras. Essas sabem que o mundo é cruel, melancólico, perverso, ilusório, temporário, feito de esquecimento, tolice e dor; e que é preciso correr em busca da comida, do sonho, do desejo. Os primeiros, os ratos brancos, desaparecem como vapor dentro do tempo: são os artistas que pensam que são artistas: infestam os laboratórios com sua arrogância de salvadores da raça: desaparecem na hora da morte: não deixam nada: nada significam: todo significado foi somente moda; mas existem as ratazanas: são os verdadeiros artistas: os que sabem que o mundo é um dejeto perigoso mas que é nesse lixo que está o significado sem significado da sua vida: elas, as ratazanas, ou eles os artistas, que formatam nosso existir: dão-lhe sentido e álibi.
Mas enquanto o artesanato dos ratos brancos existe, é mercadoria desde o início, coisa feita para brilhar e reproduzir, a arte das ratazanas é somente aquele líquido negro que escorre dos lixões. É uma arte que atravessa o mundo e se derrama inutilmente pela terra. E mesmo que transformem esse líquido novamente em água cristalina e à venda como água mineral, ainda assim o seu percurso não se apaga.
Joesér Àlvarez conquistou dentro da loucura, da perversidade e da solidão esse líquido fundamental: seus quadros se derramam com uma terra que enfim nos diz respeito. Escapamos, com ele, da arte insossa e verdinha, alegre e nativa, folclórica e medrosa dos ratos brancos das rondônias. É um milagre que tal arte nasça nessa terra entre gentes tão medrosas, tão nuas e tão repetitivas.
Os quadros de Joesér Àlvarez de repente se transformaram. Não há mais o Joesér que pintava as gaiolas do rio madeira num amarelo de pôr de tarde. Ele descobriu que Van Gogh já havia descoberto o amarelo e que Monet já desbravara os rios. Mas ninguém poderia pintar aquilo que somente Joesér Àlvarez poderia pintar. E numa noite de solidão acompanhada Joesér Àlvarez descobriu aquilo que somente ele poderia criar: e quando lhe deram paz na vida pôs mãos à obra. Num segundo, que pareceu uma eternidade, Joesér Ālvarez deixou de ser um rato branco de laboratório para se tornar uma ratazana brusca de esgoto. Enquanto Carlos Moreira é um cadáver, um morto feliz da poesia, Joesér Ālvarez é uma ratazana de esgoto de cujos olhos e de cujas mãos se levanta uma outra pintura, uma outra interioridade sem limites, um outro momento.
Esse outro Joesér Ālvarez consegue reunir no espaço restrito e bidimensional de uma tela uma dose cavalar de solidão, de desconforto, de incomunicabilidade, de incompreensão e loucura que somente outros poucos pintores tentaram com êxito essa via. Seu atual caminho atravessa a mesma trilha de Sotine, Bacon, Freud, Rustin, mas sem dever nada a eles: seu caminho, como de todo verdadeiro artista, nasce de uma loucura pessoal, de uma perversão libertina, de uma perspectiva singular, de uma estética, de uma nova filosofia e de uma outra visão de mundo.
Tanto a morte de Carlos Moreira quanto a transformação de Joesér Ālvarez em ratazana se devem ao Madeirismo como uma criação íntima dos dois. O Madeirismo não é, para eles, uma coisa imposta, uma idéia de longe, mas um outro sangue que lhes corre nas veias, uma outra Porto Velho que devora Nova Yorque, cospe Londres e Pequim e, quando deseja, acalenta uma São Paulo como se fosse uma criancinha de colo, um cachorrinho de madame. As imagens de Joesér Àlvarez multiplicam nossa capacidade de ver o outro, o horror e a maravilha da existência. Para aqueles que não se entregam a formas cansadas e pré-visíveis, é mais que um bom começo. É a interferência esperada no espaço sem tempo da arte do improvável.