O CARDUME

 

 

“faltando objetivos e aspirações, ficamos relegados à própria nudez da existência e esta se revela no seu absoluto nada e vácuo”

Schopenhauer

 

incipit

 

         [massa em movimento e anônima na qual tudo se lança/difusão, diluição, envolvimento no apartamento/mundo da indistinção/máximo de singularidade e máximo de integração/dissolução-integração/os laços se apagam e as forças de coesão advém da auto-satisfação/o permeável é impermeável/ ]

 

I

 

         No “Inferno” Dante põe os sofredores abandonados, soltos, desligados, incomunicáveis, indiferentes ao castigo do outro, à inexistência do outro, à sua memória e ao seu nome, que só ganham sentido e interesse, só despertam do torpor, ao se dirigirem ao narrador num mirar solitário para a antiga vida, para os que foram deixados, para o nome e a recordação: o inferno é o esquecimento, o igualar mineral, o ser nada mais que um bicho. Diferente do “Paraíso” nenhum deles olha para o outro ou mira à luz suprema, ou a suprema treva, nem mesmo acreditam o seguem qualquer idéia, abismados de si mesmos, do castigo, da solidão, do desespero em rodamoinho. O próprio Satã, com sua tripla mastigação, vive exclusivamente para ela, como se nada mais houvesse, absorto na fome, em seu próprio castigo ou desejo, distante, muito distante dos pecadores e seus pecados.

         O inferno de Dante não é uma cidade, uma vila, uma fazenda, uma comunidade, uma comunidade de destino, uma colônia, ou mesmo uma colônia penal. A economia do inferno prescinde de qualquer idéia comunitária seja para exemplificá-la, seja para explicá-la. O inferno funciona: basta o pecador, sua rede pessoal de pecados, o lugar onde deve pagar em infinitos trabalhos o haver vivido.

         O horror das sociedades tradicionais é precisamente perder o outro, perder as relações, perder o lugar, o sentido, a rede de crenças: o inferno é existir sozinho com o peso terrível do haver existido: o inferno para essas sociedades não são os outros, mas perder os outros, deteriorar-se tudo aquilo que o posiciona, dá sentido, finalidade. O inferno de Dante é a materialização desse medo fundamental.

 

II

 

         Há muito tempo no mundo ocidental não existe algo que possamos objetivamente denominar de comunidade, coletividade ou sociedade: o modelo de cardume se aproximaria muito mais daquilo que vivenciamos: todos juntos, sozinhos, incomunicáveis, egoisticamente se protegendo, trabalhando, desejando, sonhando: a impressão de comunidade, de sociedade, de cidade, de agrupamento, de classe social é somente idéia, sobrevive somente como costume teórico, como inércia da opinião, como ilusão dos sentidos.

         Não há sequer o “fenômeno da massa”: já não há a massa, que, de qualquer maneira, é ainda feição, atração, movimento, a forma final da comunidade sendo configurada por alguma ideologia. O cardume é a forma de existência depois da massa: já não há nem sociedade, nem classe social, nem ideologia: o capital já não precisa de nenhuma dessas ilusões antigas, arcáicas, para se reproduzir; não precisa mais nem da individualidade burguesa tradicional, nem das crenças de nenhuma religião, filosofia ou prática: os liames foram sistematicamente cortados.

         Um dos resultados da atual fase do capital foi transparencializar a sociabilidade, reposicionando-a como ilusão de cardume e, assim, tornando-a desnecessária não somente para explicar como para a viv~encia.

         Só há efeitos, resultados, se incido sobre o desejo do outro (determinada configuração do desejo, não um desejo teórico, genérico, poético), sobre seu ego, sobre aquilo que o interessa, agrada, supre, realiza: para todo o resto (que resto?) não há consegüência, ou melhor, todo o resto advem somente depois do estímulo no desejo, naquilo que pode ser oferecido: só há comunidade ou massa quando há, antes, gratificação pessoal, salivação e prêmio. Comunidade, sociedade, classe social não são mais pontos de partida, mas de chegada do viver e das possíveis explicações.

         A solidão, a apartação radical, torna a estrutura do viver, do sofrer da mesma “natureza” do cardume: abismados, absortos, estarecidos em suas funções, em seus lugares, castigos, prêmios, devorações e inações.